Desafios relacionados com o reconhecimento do Goodwill negativo nos resultados

O atual contexto económico decorrente da pandemia constitui um ambiente mais propenso a operações de concentração empresarial, onde os investidores têm oportunidade de angariar negócios desgastados pelas circunstâncias do passado recente que, ainda assim, mantém potencial de rentabilidade futura (pós pandemia).

A situação atual poderá ser suficientemente penalizadora para os atuais detentores de negócios continuarem a manter o nível de exigência financeira assim como o racional da sua cadeia de valor, ficando assim mais suscetíveis à venda a preço baixo. Para além de uma maior tendência do mercado para operações de concentração que visam ganhar escala e potenciar níveis de eficiência, os tempos que se avizinham convidam à necessidade de “sangue novo” para fazer com que as estruturas existentes e capacitadas do ponto de vista funcional, possam continuar a operar sem constrangimentos financeiros durante um período de menor disponibilidade dos seus clientes, potenciando uma substituição de um capital de suporte desgastado pela pandemia por capital.

O contexto que se aproxima poderá ser assim mais orientado para operações de concentração onde o vendedor está mais suscetível a abdicar de preço, potenciando operações onde o justo valor dos ativos líquidos adquiridos seja superior ao custo da concentração (Goodwill negativo), situação que interessa perceber que implicações pode ter para o investidor ao nível do tratamento contabilístico e fiscal.

Conceitos de Goodwill (ou trespasse) e Goodwill negativo (Badwill)

O Goodwill está associado à concentração de atividades empresariais (aquisição, fusão ou outras), designadamente a um intangível separável dos ativos adquiridos individualmente identificáveis da atividade ou entidade adquirida. Por outras palavras, podemos dizer que o Goodwill corresponde ao valor que resulta da capacidade da atividade ou entidade adquirida gerar benefícios económicos futuros (lucros futuros).

É esta expetativa de benefício que justifica que uma entidade adquirente esteja disposta a pagar, no momento da aquisição um valor superior ao interesse nos ativos líquidos da atividade ou entidade adquirida.

Por outro lado, o Goodwill negativo corresponde ao valor do interesse líquido da atividade ou entidade adquirida na parte que excede o valor pago pela aquisição, correspondendo assim a uma compra a preço baixo, ou seja, por valor inferior ao justo valor dos ativos líquidos na concentração. Por outras palavras a situação líquida do negócio adquirido é superior ao valor pago na sua aquisição.

Esta circunstância é atípica e pode resultar de uma necessidade de venda imediata (venda por compulsão), ou de outros motivos que importa avaliar em detalhe para que a expressão contabilística possa refletir de forma adequada a realidade económica ou, se quisermos, a visão normativa das operações.

Importará assim, compreender de forma detalhada e quantificada sobre o racional do projeto de investimento inerente à concentração, ou seja, compreender a visão do adquirente e a forma como este explica a formação do preço. Este será sempre um ponto crucial para que o preparador da informação financeira possa cumprir o seu papel de narrador das operações de uma entidade de forma adequada, ponderando corretamente o justo valor dos capitais próprios e dos passivos contingentes, assim como outros fatores a ter em consideração na formação do preço e que podem elucidar o porquê da compra a preço baixo e consequentemente, o momento de realização do Goodwill negativo (como se verá de seguida).

Reconhecimento contabilístico do Goodwill e do Goodwill negativo

Ao nível do cálculo contabilístico do Goodwill, tanto a NCRF 14 como a IFRS 3, preveem que o Goodwill deve resultar da diferença entre o valor pago na aquisição da atividade ou entidade e o justo valor líquido dos ativos identificáveis adquiridos e dos passivos assumidos, ainda que contingentes. O montante apurado de Goodwill deverá ser reconhecido no ativo como uma componente separada do custo da compra.  

Já no que respeita ao Goodwill negativo (compra a preço baixo) os dois contextos normativos preveem tratamentos distintos quanto ao reconhecimento. No contexto IFRS 3, encontra-se previsto que a diferença negativa entre o valor pago e o interesse nos ativos líquidos da adquirida deve ser reconhecida como ganho nos resultados à data de aquisiçãotout court, tal como se verificava na NCRF 14 até ao período de 2015.

A partir do período de 2016, inclusive, através da alteração da NCRF 14, nas compras a preço baixo, a referida diferença negativa entre o custo da concentração e os justos valores dos ativos adquiridos e passivos e passivos contingentes assumidos identificáveis deve ser reconhecida como ganho nos resultados à data da sua realização.

Desafios relacionados com reconhecimento contabilístico do Goodwill negativo

Conforme referido acima, com a versão de 2016 da NCRF 14, a adquirente deve reconhecer o ganho nos resultados apenas à data da realização, ao contrário do anteriormente estipulado na versão em vigor até 2015. No entanto, a NCRF 14 não estabelece de forma tipificada quanto ao que se deve entender por data de realização, enquadramento que pode originar interpretações diferenciadas, tornando exigível o adequado entendimento sobre o racional subjacente à aquisição ou operação de concentração, que suporte o processo de reconhecimento do Goodwill negativo e sua realização por parte dos preparadores das demonstrações financeiras.

Ainda conforme referido anteriormente, na formulação de um racional económico para a determinação do momento de realização poder-se-ão identificar triggers de reconhecimento como por exemplo a expetativa de perdas futuras (ainda que temporárias), a obtenção de dividendos, alienação da concentração, ou até mesmo a assunção de não identificabilidade de um trigger, podendo ser formulados diversos juízos, que podem levar a tratamentos diferenciados em função do entendimento dos preparadores das demonstrações financeiras sobre o conceito de realização introduzido pela revisão de 2015 da NCRF 14. Na construção do racional económico podem existir várias abordagens, mas também possíveis “armadilhas” que importa evitar. Uma das “armadilhas” que importa evitar é o reconhecimento do ganho no momento em que é realizada uma diferença de justo valor que era esperada já desde a aquisição, ou seja, quando, por exemplo (i) se concretiza um incobrável que já era esperado à data de aquisição ou (ii) quando é alienado um ativo por um valor inferior ao escriturado, quando já se esperava que assim viesse a acontecer à data de aquisição.

Nestes casos, podemos dizer que o Goodwill negativo e o consequente diferimento do ganho, pode nunca ter chegado a existir na medida em que poderia constituir uma diferença de justo valor à data de aquisição.

No caso do Goodwill negativo resultar de perdas esperadas futuras da adquirida, situação que pode ganhar intensidade em períodos de crise económica (ainda que transitória), como são aqueles que estão a ser vividos no atual contexto pandémico, o reconhecimento do ganho poderá ocorrer no momento em que as perdas são efetivadas, existindo assim uma neutralização de efeitos no futuro que já haviam sido antecipados pelo preço de compra.

O conceito de realização e as diferentes opções

Quando o conceito de realização é relacionado com o recebimento de meios financeiros, o reconhecimento do ganho deveria ocorrer no momento em que ocorrem os fluxos financeiros decorrentes de uma venda futura, ou de outros benefícios de caixa obtidos antes desse momento. Esta situação, ao nível do reconhecimento, pode ser potencialmente atípica no caso de benefícios de caixa obtidos antes do momento da venda futura do negócio, como veremos de seguida.

No ano em que o negócio adquirido libertar meio líquidos, inferindo-se daqui um momento de realização do Goodwill negativo, estes vão ser consequência de um ganho económico gerado subsequentemente, logo, nesse momento futuro, haveria lugar ao reconhecimento de ganho “operacional” ao mesmo tempo que seria reconhecido o ganho decorrente da compra do negócio a preço baixo. Neste caso, incorremos numa situação que poderia potenciar uma sobrevalorização do desempenho, afastando-se na aparência do regime de acréscimo, pressuposto subjacente à preparação da informação financeira. Nestes casos podemos dizer que o montante do ganho económico imputado aos resultados resulta de dois contributos, designadamente da circunstância da adquirente do negócio ter neutralizado a expetativa de perda do alienante e ao mesmo tempo do bom desempenho obtido na exploração do negócio.

Já no caso da venda futura, considerando que o custo do investimento reflete o justo valor do interesse nos ativos líquidos no momento da aquisição, o ganho diferido no momento da compra seria reconhecido numa lógica de que seria potencial até que se concretizasse através de uma venda futura. Neste momento, confirmar-se-ia que, de facto o negócio valeria o justo valor do interesse nos ativos líquidos no momento da aquisição, reconhecendo-se o ganho (agora certo) que havia sido diferido no momento da compra. Se a venda futura ocorrer por valor inferior o justo valor do interesse nos ativos líquidos no momento da aquisição, então a menos valia a apurar seria neutralizada pelo reconhecimento do ganho que foi diferido no momento da compra. Neste momento, confirmar-se-ia que o ganho foi apenas potencial, não se concretizando na venda futura.

Existem ainda outros entendimentos sobre o momento de reconhecimento do Goodwill negativo nos resultados, nomeadamente o reconhecimento de um ganho linear ao longo do tempo (lógica equivalente à amortização do Goodwill que encontrou aderência no âmbito do antigo POC onde o Goodwill negativo era diferido, e reconhecido como proveito durante cinco anos). Uma lógica de reconhecimento sem racional de base torna-se mais atrativa quando a construção teórica de suporte é especialmente complexa e incerta, diluindo-se assim o risco de juízos subjetivos e amplitude de tratamento pelos diferentes preparadores da informação financeira.

Enquadramento tributário

O código do IRC não prevê nenhum tratamento específico sobre o reconhecimento de Goodwill negativo, nomeadamente sobre a sua relevância para efeitos de tributação. Importará, portanto, obter compreensão sobre enquadramentos análogos ou outros enquadramentos residuais ou não que possam proporcionar uma orientação de tratamento.

Apesar de não encontrarmos uma previsão de tratamento específico sobre o reconhecimento de Goodwill negativo, poderá não deixar de ser relevante observar qual o tratamento previsto no que respeita ao Goodwill (positivo). Temos assim que o artigo 45º-A prevê no seu número 1 que o gasto fiscal decorrente do Goodwill adquirido numa concentração de atividade empresariais seja aceite em parte iguais durante vinte anos, contudo o número 4 do mesmo artigo exclui a relevância fiscal deste gasto caso o Goodwill respeite a participações sociais. Se fosse admissível a possibilidade de tratamento análogo, poderíamos ser levados a considerar que o Goodwill negativo apenas relevaria para efeitos fiscais se não decorresse da aquisição de participações sociais.

Não obstante, salientamos a possibilidade de existirem entendimentos de que o ganho (Goodwill negativo) é fiscalmente relevante no período em que for contabilizado, independentemente da concentração empresarial ter sido efetivada através de uma participação social, atendendo nomeadamente ao modelo de dependência parcial do IRC face à contabilidade (artigo 17º do CIRC). Este pressuposto, dependeria ainda do entendimento de que não se aplicam as normas de “diferimento da tributação” previstas nos nº 8 e 9 do artigo 18º do CIRC, nomeadamente por se poder considerar que Goodwill negativo não resulta da utilização do método de equivalência patrimonial, nem de ajustamentos decorrentes da aplicação de mensuração por modelos de justo valor.

Não se pretende daqui atingir um entendimento sobre um enquadramento que seja considerada mais ou menos razoável que outro, importando apenas alertar para os aspetos críticos de uma matéria que é complexa e que poderá ser suscetível a diferentes interpretações e, consequentemente, diferentes impactos

Conclusão

A amplitude de entendimentos e possibilidades de tratamento possíveis podem constituir oportunidade para os preparadores da informação financeira ponderarem o modelo que melhor se ajuste à realidade das operações, nomeadamente considerando os fatores que influenciaram a formação do custo da concentração e, consequentemente, a avaliação sobre o momento de realização do ganho resultante de Goodwill negativo.

Por outro lado, o espaço discricionário contabilístico existente pode potenciar julgamentos subjetivos que tendam a alinhar os resultados demonstrados com os interesses da gestão em determinado momento, constituindo uma fonte de risco para a qualidade da informação financeira.

Será, assim, especialmente importante que os juízos formulados pela gestão na preparação da informação financeira nas matérias relacionadas com Goodwill negativo, sejam adequadamente fundamentados quanto ao racional subjacente e ao nível de divulgação dos pressupostos considerados. Esta atenção será assim especialmente importante para a melhor leitura dos diferentes stakeholders, aumentando a compreensibilidade da informação financeira.

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