ONDE ESTÁ A TRIBUTAÇÃO DO “CROWDFUNDING” NA GREVE DOS ENFERMEIROS?

A greve dos enfermeiros que veio polarizar a nação é singular em mais do que um sentido – por um lado, é uma das paralisações mais longas e com maior adesão no setor dos últimos anos e, por outro, encontra-se a ser financiada por um sistema relativamente inovador em Portugal – o “crowdfunding”.

A greve dos enfermeiros que veio polarizar a nação é singular em mais do que um sentido – por um lado, é uma das paralisações mais longas e com maior adesão no setor dos últimos anos e, por outro, encontra-se a ser financiada por um sistema relativamente inovador em Portugal – o “crowdfunding”.

O financiamento colaborativo, ou crowdfunding, regulado pelo Regime Jurídico do Financiamento Colaborativo, previsto na Lei n.º 102/2015, de 24 de agosto, com as alterações introduzidas pela Lei nº 3/2018, de 09 de fevereiro, é o tipo de financiamento de entidades, nomeadamente pessoas coletivas (nas quais se incluem os sindicatos), das suas atividades e projetos, através do seu registo em plataformas eletrónicas acessíveis na Internet, com o objetivo de angariar investimento.

Existem várias modalidades de financiamento colaborativo: o donativo, a recompensa, o capital e o empréstimo, sendo que os enfermeiros recorreram ao financiamento colaborativo através de donativo, o que significa que as contribuições são efetuadas sem expectativa de qualquer contrapartida (pelo menos direta).

Trata-se, portanto, de um mecanismo de financiamento que é, na sua maioria, composto por donativos anónimos de, supõe-se, apoiantes “sinceros” da causa dos enfermeiros, sejam estes particulares ou pessoas coletivas, cujas contribuições chegaram já a um total superior a Euro 750.000, em apenas duas angariações.

Sem entrar em nenhuma das considerações éticas, morais, juslaborais e até do direito da concorrência que poderão estar associadas à opacidade deste tipo de financiamento, persiste ainda uma questão muito importante – como serão tributados estes montantes?

Considerando a desproporção dos prejuízos causados à entidade patronal e a compensação pelas perdas salariais dos trabalhadores em greve através do crowdfunding, existe uma certa tendência para supor que, mesmo assim, aderir à greve deverá ser, certamente, menos vantajoso, do que para os trabalhadores que não puderam, ou não quiseram aderir.

Os alemães têm uma inventiva palavra para este sentimento – Schadenfreude. Este sentimento traduz-se na alegria ou satisfação perante o dano ou infortúnio de um terceiro (quem mais para ter um vocabulário tão colorido como os alemães?).

Contudo, será que a sociedade verá esse Schadenfreude satisfeito? Como serão, efetivamente, tributados os rendimentos auferidos pelos enfermeiros em greve através do crowdfunding?

            Serão tributados como rendimentos de trabalho?

Os rendimentos de trabalho dependente ou independente (Categorias A e B do IRS), pressupõem que o seu pagamento esteja direta e intimamente relacionado com uma prestação laboral vinculada a um empregador (no caso do trabalho dependente), ou a uma prestação de serviços (no caso do trabalho independente).

Atendendo a este conceito, numa primeira vista, diríamos que os rendimentos distribuídos pelo crowdfunding não se enquadrarão como rendimentos de trabalho dependente ou independente,

Efetivamente, falta a estes rendimentos o indispensável nexo de causalidade entre a prestação de serviços de enfermagem e o montante recebido através do crowdfunding, não podendo considerar-se que os mesmos são pagos como forma de remuneração de uma prestação de serviços.

Também não podemos entender que se tratam de “gratificações” obtidas pelos enfermeiros (as vulgas “gorjetas”), visto que apesar de não serem pagas pela entidade patronal, estas apresentam um vínculo inerente à prestação do trabalho dependente dos colaboradores que, neste caso, nem nas mentes mais criativas poderá existir.

Neste contexto, sem esta conexão com a prestação laboral dos enfermeiros, entendemos que não é possível enquadrar os rendimentos auferidos através do crowdfunding como rendimentos de trabalho dependente ou independente. 

Contudo, significará isto que não incidirá qualquer tributação sobre estes rendimentos? Cumpre investigar mais a fundo, sob pena de desiludirmos mortalmente o nosso Schadenfreude.

            Então e se forem considerados donativos?

Com os rendimentos obtidos através do financiamento colaborativo, é claro que o património pessoal dos enfermeiros sofre um acréscimo. A questão que importa conhecer é se esse acréscimo patrimonial é ou não objeto de tributação na esfera do beneficiário.

De facto, é indiscutível que estamos perante uma transmissão gratuita, pecuniária, que, não sendo efetuada diretamente para o beneficiário, é transmitida para uma plataforma online com o propósito de reunir este tipo de donativos.

Neste contexto, atendendo à verba 1.2 da Tabela Geral anexa ao Código do Imposto do Selo, poderíamos estar perante um facto tributável à taxa de 10%. Esta tributação seria suportada pelo beneficiário do donativo, o qual se veria onerado com esta tributação.

A este respeito, contudo, refira-se que o Código do Imposto do Selo exclui da tributação os donativos que, sendo conforme aos usos sociais, não ultrapassem o montante de Euro 500.

Ora, aqui caberá alguma análise, relativamente à qual apenas ousamos levantar questões pertinentes.

De facto, poder-se-á debater o que constituem os “usos sociais” que o preceito normativo refere – Será justo excluir o crowdfunding deste tipo de definição simplesmente porque a sua inovação e contemporaneidade não permite que seja considerado um “uso”? Não poderá alguém discutir que o crowdfunding surge como uma solução que tem a vantagem de poder exprimir o grau de solidariedade da população com a greve sendo, portanto, um corolário do que se pretende que sejam os “usos sociais”?

Paralelamente, mesmo que um intérprete, imbuído de um espírito de benevolência, considere que estes donativos se integram na primeira parte do preceito normativo (sendo, por conseguinte, conformes aos “usos sociais”), por forma a aferir se estes donativos serão isentos de Imposto do Selo será ainda necessário clarificar de que forma se calculará o limite de Euro 500.

Neste contexto, deverá este limite ser computado relativamente ao montante global auferido nas angariações de crowdfunding, as quais ascenderam a mais de Euro 750.000? Ou, por outro lado, deverá ser calculado relativamente a cada donativo efetuado?

Intimamente ligada com estas questões surge ainda a problemática de quem será o sujeito passivo da eventual tributação a incidir sobre os montantes doados – os enfermeiros, ou a própria plataforma de crowdfunding? No fundo, quando, como e onde irá a Administração Tributária buscar este imposto e qual será a medida fiscalmente mais justa?

Poderá causar alguma perplexidade o facto de ainda não haver uma reposta cabal a esta questão. A verdade é que, face à qualidade inovadora deste tipo de financiamento das greves, o enquadramento fiscal destas contribuições não está ainda totalmente deslindado.

O contributo que podemos oferecer relativamente a esta questão é o nosso entendimento de que esta situação não será uma ocasião isolada. De facto, os tradicionais fundos de greves já não se adequam ao novo perfil de paralisações, em relação ao qual o atual ordenamento jurídico laboral, e fiscal, ainda não consegue dar resposta.

Neste contexto, o crowdfunding surge no horizonte como uma tendência galopante que veio para ficar, e a Administração Tributária poderá ter de correr para apanhar. Mas, galopando, trotando ou rastejando, mesmo no crowdfunding, nada é mais certo nesta vida, do que a morte e os impostos.

Sérgio Santos Pereira, Beatriz Pereira 

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