A aproximação da Autoridade Tributária à visão de George Orwell em 1984
Ora, face aos avanços da Autoridade Tributária (“AT”) nos últimos anos na procura de informação relativa aos contribuintes, será justo afirmar que existe uma clara aproximação entre a ficção de George Orwell e a realidade dos contribuintes portugueses, se não, vejamos:
- Os rendimentos auferidos por residentes para efeitos fiscais em Portugal e pagos por entidades residentes são reportados à administração fiscal, dispondo esta da informação relativa a qualquer rendimento auferido por um contribuinte, quer este advenha de uma relação de trabalho, de investimentos financeiros (tais como juros ou dividendos), de investimentos imobiliários ou outros;
- Paralelamente, as despesas dos contribuintes são, também elas, já objeto de comunicação à administração fiscal, através do Portal e-fatura, que as analisa e categoriza, passando a dispor de informação relativa à forma como os rendimentos supra identificados são utilizados pelos contribuintes;
- Adicionalmente, são ainda reportadas à administração fiscal um conjunto de outras informações, como, por exemplo, os hábitos de poupança dos contribuintes (i.e., as contribuições para Planos de Poupança Reforma).
De facto, e tendo conhecimento de todas estas informações, já é possível ao Big Brother fiscal apurar, pelo contribuinte, o Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) que lhe é devido anualmente. Estas medidas, a que alguns poderão chamar de “simplificação”, revelam-se, também, uma intrusão, cada vez maior, da AT na vida dos contribuintes.
No entanto, a demanda por informação por parte da AT não termina aqui. No início deste ano foi aprovado um diploma que prevê a comunicação, por parte das instituições financeiras, do saldo das contas bancárias detidas pelos contribuintes portugueses que excedam os Euro 50.000 à AT.
Para além disso, é importante mencionar que o âmbito deste reporte não se encontra restrito às contas de depósito à ordem ou de depósito a prazo. De facto, o leque de contas abrangidas é bastante amplo, encontrando-se sujeitas a reporte, por exemplo, as apólices de seguros do ramo vida e as contas de custódia (ações, obrigações, títulos de dívida e outros ativos financeiros), encontrando-se apenas excluídos de reporte os certificados do aforro e do tesouro, pelo facto de serem mantidos em contas junto do IGCP (o que já não acontece quanto aos bilhetes e obrigações do tesouro, que se encontram sujeitos a reporte).
De facto, apenas no caso dos Planos Poupança Reforma parecem subsistir dúvidas sobre se se encontram sujeitos a comunicação – o que, contudo, não significa que a AT os desconheça, atendendo a que as instituições financeiras se encontram obrigadas a reportar as contribuições feitas pelos contribuintes para os mesmos.
Espera-se que, até 31 de julho desde ano, seja já reportada a informação relativa aos anos de 2017 e 2018, podendo a AT, após analisar a informação e comparar a mesma com (i) os rendimentos dos contribuintes e (ii) os gastos dos mesmos, iniciar processos inspetivos e vir a solicitar informação detalhada sobre os movimentos bancários dos contribuintes – a única informação que a AT ainda não dispõe à data.
Atendendo ao exposto, ao longo dos próximos meses poderemos observar quais os comportamentos que os contribuintes irão assumir por forma a procurarem algum refúgio a este controlo por parte da AT. De facto, será interessante observar se o setor bancário aumentará os seus proveitos com o aluguer de cofres bancários para depósito do vil metal, diminuindo os seus ativos, ou se, por outro lado, aumentarão os ativos em jurisdições não cooperantes no que respeita à troca de informações financeiras, tais como a Samoa Americana, a Domínica, o Guame, as Ilhas Virgens dos Estados Unidos, entre outras.
Tendo em conta o exposto, e em tom sarcástico, podemos afirmar que todas as semanas nos habituamos a ver quais os livros que se encontram no top dos mais lidos a nível nacional ou internacional. No que respeita à AT, parecem não restar dúvidas que 1984, de George Orwell, está no top há longos anos. Resta-nos perceber se os contribuintes mais avessos à exposição procurarão novos atlas com a indicação de jurisdições específicas para as suas necessidades, ou darão largas à sua criatividade, levantando o seu dinheiro do banco, para substituir a utilização dos cartões bancários por meios de pagamentos mais discretos (cash), devidamente armazenado em local insuspeito, como por baixo do colchão.