Semana de quatro dias. Trabalhadores rendidos mas empresas reticentes

Projeto piloto é para avançar, mas há empresas que já deram o pontapé de saída ao “oferecerem” a sexta-feira à tarde. Mas há quem se mostre contra. Para a AEP “este não é o momento oportuno para avançar com a experiência”, quando as empresas enfrentam um agravamento de vários custos de produção e de falta de mão-de-obra.

O Governo acenou com um projeto-piloto de aplicação da semana de quatro dias, uma notícia que animou os trabalhadores, mas que pôs as empresas de pé atrás. Para já, do lado do Executivo há apenas uma garantia: “A adoção da medida não será prejudicial aos trabalhadores, designadamente, com eventuais cortes de remuneração. “Não é para pôr nada em causa do que existe”, garantiu a ministra do Trabalho, Ana Mendes Godinho.

Segundo a governante, o estudo a ser desenvolvido com os parceiros sociais vai definir parâmetros, nomeadamente, quanto à dimensão e representatividade procurada nas empresas que irão integrar o programa. Mas já haverá voluntários e a garantia que o teste à medida não representará qualquer perda de proteção para os trabalhadores.

Do lado empresarial, a notícia caiu que nem uma bomba. Para o presidente da Associação Empresarial de Portugal (AEP) não há margem para dúvidas: “Não é o momento oportuno para avançar com esta experiência”, diz ao i, Luís Miguel Ribeiro, acrescentando que “as empresas enfrentam um agravamento de vários custos de produção, decorrentes dos impactos acumulados da pandemia e da guerra na Ucrânia, a que se junta o agravamento dos encargos financeiros pela via do aumento das taxas de juro, face à espiral inflacionista que estamos a observar”.

De acordo com o responsável, em vez de o Governo estar a discutir uma possível redução de horas de trabalho entende que “o foco da discussão e das preocupações deve ser outro: a recuperação da economia portuguesa, por forma a inverter a trajetória de empobrecimento relativo do país. Intimamente ligada ao crescimento económico temos a questão das qualificações, correlacionadas com a produtividade. Estes temas e a sua resolução é que devem estar nas preocupações do momento”.

Já a líder da CGTP tem vindo a defender que o “que é necessário não é aumentar o horário de trabalho em dia nenhum da semana”. Esta é a sua reação à hipótese de em contrapartida ser necessário avançar com o aumento do horário nos quatro dias de trabalho para dar “folga” à sexta-feira. “O que é necessário e imprescindível é que os avanços da ciência e da técnica tenham consequência na evolução da sociedade”, chegou a afirmar Isabel Camarinha.

Mas nem todos pensam assim. Para Tatiana Teófilo, manager, human resources da Mazars Portugal, esta questão da semana de quatro dias de trabalho ”claramente é uma resposta ao contexto que vivemos durante a pandemia e ao facto de, enquanto sociedade, termos percebido que o trabalho remoto não foi sinónimo de quebras ao nível de produtividade para a grande generalidade das empresas”, diz ao i.

A responsável admite ainda que “isso é algo positivo”, uma vez que “as pessoas estão cada vez mais flexíveis e a equacionar novos formatos que melhor possam servir e isso permite que os colaboradores fiquem mais satisfeitos, logo trazem resultados”.

Mas deixa um alerta: “Sei que não seria possível começarmos com um novo regime na próxima segunda-feira a pensarmos ‘logo se vê como é que isto vai correr’. Há muitas coisas que têm de ser ponderadas numa alteração como esta. Todos crescemos com semanas de cinco dias de trabalho”.

Prós e contras Para Luís Miguel Ribeiro, esta hipótese em cima de mesa merece uma reflexão cuidada, uma vez que “envolve uma alteração profunda na forma como a economia e a sociedade estão organizadas”, defendendo também que “é uma reflexão que deve ser feita com o envolvimento de todas as partes interessadas”.

E vai mais longe: “É necessário medir, com seriedade, todos os impactos potencialmente positivos (vantagens) e negativos (desvantagens) e fazer um benchmarking com outros países. Contudo, é necessária muita prudência na ‘importação’ de modelos que podem funcionar (mais ou menos bem) em países com culturas muito diferentes e, também, com níveis de desenvolvimento económico distintos”.

O presidente da AEP diz ainda que “é do acompanhamento das tendências internacionais e do que for sendo a prática corrente das empresas nacionais − no seu relacionamento com trabalhadores, clientes e fornecedores, nacionais e estrangeiros − que deverá emergir, de uma forma natural e no momento mais apropriado, a necessidade de um debate político”.

Uma opinião partilhada por Tatiana Teófilo ao defender que ainda estamos todos a aprender com os países que já implementaram este tipo de formato. “Diria que a grande vantagem estaria na atração de talento e no equilíbrio entre a vida pessoal e profissional das nossas pessoas, mas haveria grandes desafios ao nível das agendas de trabalho que teriam de ser bem equacionados para que no final não tivéssemos o resultado contrário àquele que gostaríamos de atingir – com um aumento de stress ao nível das equipas”, refere ao nosso jornal.

Empresas estão preparadas? E exige mais trabalhadores? Luís Miguel Ribeiro lembra que um dos objetivos da redução da semana de trabalho é a promoção de um maior equilíbrio entre a vida pessoal e profissional, o que no seu entender, “é positivo do ponto de vista da melhoria da qualidade de vida das pessoas”, mas lembra que é importante não esquecer que “essa melhoria também está estreitamente ligada ao nível do rendimento das pessoas e, em termos mais agregados, ao nível do rendimento da economia”.

Isto significa, no seu entender que, “independentemente do modelo organizativo do mercado laboral, a prioridade das políticas públicas deve ser criar uma envolvente favorável ao setor empresarial, uma das partes fundamentais na criação de riqueza e emprego. Só desta forma será possível praticar níveis de remuneração mais elevados e, com isso, proporcionar um melhor nível de vida e de bem-estar às pessoas”.

Já em relação ao facto de implicar a contratação de mais trabalhadores, o presidente da AEP defende que tudo terá de ser “previamente estudado e com o rigor necessário”.

Também para a manager, human resources da Mazars a palavra de ordem passa por “preparação”. E face a esse cenário considera que, “não é possível dar uma resposta concreta porque cada empresa tem uma realidade e haverá empresas completamente preparadas para adotar e outras que dificilmente o poderiam fazer a curto ou médio prazo, porque ainda precisariam de se preparar, até para bem dos seus próprios colaboradores”.

E quanto ao reforço de equipas? A responsável defende que a ideia dos quatro dias de trabalho não é concreta. “Estamos a falar de 80% de trabalho? É que isso não terá de ter um formato obrigatoriamente fechado de quatro dias.

“Estamos a falar de uma pausa a meio, início ou fim da semana? Ou estamos a falar de um formato aberto, em que cada colaborador teria opção de escolha? Pessoalmente, acho que só podemos falar de reestruturações quando ouvimos quem já faz parte das nossas equipas e aqui passamos imediatamente para um registo muito individual, em que o que servirá um colaborador, poderá não servir o outro. Em suma, diria que não é possível equacionar o número de trabalhadores ou novas contratações, sem conhecermos muito bem o formato de que estamos a falar”, refere ao i.

Mas, numa altura, em que a maioria dos setores reclama a falta de milhares de trabalhares, Luís Miguel Ribeiro não hesita: “A ideia de reduzir a semana de trabalho agudizaria o problema”, acrescentando que “as questões mais prementes se colocam em outras frentes, nomeadamente no que se refere às baixas qualificações de uma fatia muito significativa de trabalhadores e à necessária adequação das suas competências aos desafios que se colocam às empresas e à sociedade”.

E vai mais longe: “Não faz sentido reduzir a semana de trabalho num cenário de manutenção de baixas qualificações. É bom não esquecer que 47% dos trabalhadores por conta de outrem possuem no máximo o nível de ensino básico, sendo essa percentagem ainda mais elevada nos trabalhadores da indústria transformadora (59%). Elevar as qualificações é fundamental para se conseguir alcançar ganhos na produtividade horária (que é apenas de pouco mais de 60% da média europeia) e uma melhoria do nível de vida do país (PIB per capita em paridade de poder de compra), que já é o sétimo mais baixo da União Europeia – cada vez mais na cauda da Europa”.

Opinião contrária tem Tatiana Teófilo ao considerar que, nesta altura, esta discussão tem ainda maior impacto. “As pessoas estão a equacionar todas as opções. Por isso, é preciso analisá-las e perceber se servem os objetivos de cada firma. Esta poderá ser uma oportunidade para as empresas se fazerem sobressair, caso considerem que este regime é uma opção viável para as suas necessidades. Quando o foco são os resultados e há métricas sólidas para os medir, falamos cada vez menos no âmbito do quantitativo, para falar no âmbito do qualitativo. Se queremos fazer sempre o melhor possível, teremos sempre de explorar todas as opções da melhor forma possível”, salienta.

Quanto aos setores que poderão ser mais penalizados por esta medida, a responsável garante que há atividades que conseguem implementar a medida com maior facilidade do que outros, recordando que a Mazars Portugal implementou o programa work at home ainda antes da pandemia, quando muitas empresas não equacionavam fazê-lo. “Viemos depois a perceber que acabaram por conseguir responder ao desafio, o mesmo poderia acontecer num cenário de reestruturação da semana para um novo formato. Claro que uns conseguiram com maior facilidade do que outros. Haverá sempre aqueles que terão de enfrentar desafios acrescidos, mas não podemos dizer que seria impossível”.

Mais reticente está o presidente da AEP ao considerar que é necessário perceber a potencial recetividade e, acima de tudo, a adequabilidade deste modelo de organização de trabalho que difere consoante o setor. “Reduzir a carga semanal de trabalho em 20% será muito complexo para alguns setores de atividade como a indústria”, refere ao nosso jornal.
Opinião contrária tem a Feedzai que vai retomar em agosto a semana de quatro dias de trabalho, no entanto, com ajustes face ao modelo levado a cabo no verão do ano passado. 

Já a PHC Software vai permitir aos colaboradores tirar 12 sextas-feiras por ano para tempo pessoal, introduzindo as semanas de quatro dias sem qualquer compensação horária. Esta novidade faz com que os colaboradores da tecnológica obtenham um total de 35 dias anuais para tempo pessoal, o que equivale a 13% dos dias úteis do ano.

Também o Doutor Finanças, depois de uma primeira experiência no verão, decidiu voltar a implementar a semana laboral de 32 horas (em alternativa às habituais 40 horas semanais). Mas apesar da redução do horário, os rendimentos dos trabalhadores mantêm-se inalterados apesar da redução de horário.

Sexta-feira à tarde já deu pontapé de saída São várias as empresas que já avançaram com a medida de darem a tarde de sexta-feira aos seus trabalhadores. O caso mais recente é a Sonae, dona do Continente, que “oferece” uma tarde aos colaboradores que trabalham nos escritórios. Ou seja, estamos a falar de um universo na ordem dos dois mil.

Neste momento, os escritórios estão também a funcionar com um sistema híbrido. Ou seja, podem trabalhar a partir de casa dois dias por semana. Esta é mais uma aposta na política de flexibilidade levada a cabo pela empresa. 

Mas não é a única. A empresa Bmviv de Viana do Castelo, que já dá folga aos trabalhadores à sexta-feira à tarde, está a ponderar avançar em 2023 para o modelo da semana de trabalho de quatro dias. No entanto, o regime laboral de 36 horas semanais e folgas à sexta-feira à tarde implicava que os funcionários dessem em troca uma das sextas para trabalho de voluntariado na comunidade, associado a causas de responsabilidade social da própria empresa.

É certo que há ofertas para todos os gostos. O i sabe que há casos de empresas que mantêm as 40 horas semanais, mas para “oferecerem” a tarde de sexta, os trabalhadores têm de trabalhar mais 1h por dia para compensar. 

Há outros que preferem dar aos trabalhadores o modelo que preferem: escritório, teletrabalho ou modelo híbrido. Um desses casos é a Blip que ao i diz que é “uma empresa que valoriza muito a flexibilidade dos colaboradores”, daí ter lançado recentemente o projeto Ways of Working “em que oferecemos a todos os colaboradores a possibilidade de escolherem o modelo de trabalho que mais lhes convém – remote, at the office, best of both – e em cada um destes modelos, a empresa apoia com um suplemento financeiro” para despesas como deslocações ou eletricidade e internet. Para já, garante que “ainda não testou a semana de trabalho de quatro dias de forma oficial”. 

Experiência para esquecer Uma das pioneiras na implementação desta medida foi a Câmara de Mafra que avançou com a semana de quatro dias de trabalho para um grupo restrito de trabalhadores da autarquia, entre 1 de janeiro de 2009 e 31 de dezembro de 2013, mas fonte oficial da câmara lembra ao i que os pressupostos que estiveram na base da sua implementação não se aplicam à realidade atual.

A autarquia garante que não pretende retomar a implementação desta medida. E recorda a experiência anterior. “Houve uma desigualdade de tratamento entre trabalhadores e consequente descontentamento, uma vez que a medida apenas se aplicou a um grupo restrito de trabalhadores, nomeadamente na área administrativa, não sendo passível de abarcar serviços essenciais”.

Por outro lado, chamou a atenção para o facto de haver um “cansaço crescente dos trabalhadores abrangidos e consequente redução da produtividade, dado o elevado número de horas de trabalho desempenhadas em cada um dos quatro dias”, enquanto “no caso dos trabalhadores com menores a cargo assistiu-se a uma dificuldade de conciliação com a vida pessoal e a um aumento dos custos imputados ao orçamento familiar com recurso à contratação de serviços de prolongamento de horário para ocupação de tempos livres destes menores nos dias em que o horário de saída dos trabalhadores era mais tardio. 

E as dificuldades não ficaram por aqui. Apesar de se assistir à redução dos custos com consumos de energia, água, combustíveis, serviços de segurança e limpeza, estes valores foram-se esbatendo, já que os trabalhadores com cargos de chefia retomaram funções à 6.ª feira para acompanhar a prestação de serviços essenciais que se mantinham em funcionamento. A somar a isso há que contar com “o descontentamento por parte de operadores económicos e cidadãos, face à impossibilidade de acesso aos serviços municipais à sexta-feira”.

Recorde-se que o Orçamento do Estado para 2022 compromete o Governo com um teste que envolva 100 empresas a atuar em Portugal, de forma voluntária. O compromisso, integrado sob proposta do Livre, replica as intenções já presentes no programa do Governo, e antes disso na plataforma eleitoral do PS às eleições legislativas de janeiro.

É certo que a redução do período laboral, por semana, tem vindo a ganhar expressão em vários países. E a pandemia foi um dos fatores que veio impulsionar a semana de quatro dias de trabalho.

In Sol

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