Se o mapa de riscos para a economia, as empresas e os gestores mudou, em quantidade e em intensidade, face ao impacto da crise pandémica, também o mapa de riscos dos auditores e o exercício da sua actividade são impactados. O cepticismo profissional tem de ser intensificado e o planeamento antecipado a todos os níveis. O número e complexidade das normas de contabilidade e de auditoria determinam que o auditor seja também agente impulsionador, junto dos órgãos de gestão, na antecipação de questões que podem ter expressão no relato financeiro.
Nesta realidade complexa, os utentes e destinatário da auditoria podem demonstrar expectativas diversificadas e, por vezes, contraditórias relativamente ao que é suposto esta disponibilizar. Dado o seu papel central na criação de confiança e na garantia de mercados financeiros estáveis, o debate relativamente ao âmbito de auditoria, metodologias actuais, os entregáveis e rumo para o futuro é intenso.
A percepção perante a auditoria também está a mudar: a tecnologia está a transformar o papel dos auditores e a dar origem a novos processos e oportunidades de intervenção. A necessidade de reformar a auditoria está a tornar-se mais premente, sendo estimulada pela necessidade de criar um mercado mais saudável e competitivo.
Neste contexto de mudança e desafios acrescidos, o que esperam as empresas de auditoria? A suposição de quererem aquilo a que podemos chamar de auditoria financeira tradicional parece já não corresponder à realidade, como revelam 96% dos entrevistados num estudo realizado pela Mazars. Estes valorizam, sobretudo, o facto de os seus auditores poderem vir a ampliar a sua oferta de serviços para além da auditoria financeira e responder a novas prioridades e exigências de negócio.
O estudo "O futuro da auditoria: visão de mercado - mitos, realidades e caminhos a seguir”, realizado junto de mais de 500 utentes de auditoria e decisores em 12 países, questionou as empresas sobre as suas expectativas em relação à auditoria e construiu uma imagem detalhada das questões que mais preocupam o mercado. Parecem continuar a existir concepções difusas sobre a missão dos auditores e dos entregáveis de auditoria, que sublinham a necessidade de uma discussão focada e transparente sobre o âmbito da auditoria. Importa explorar e identificar o que precisa de mudar para que a auditoria evolua e continue a ocupar o papel para o qual foi desenhada.
As respostas obtidas permitem ter uma melhor compreensão acerca da relação das empresas com os serviços de auditoria disponibilizados, apresentam objectiva das necessidades do definem recomendações para do sector.
Diversificar a oferta
A maioria dos entrevistados deseja que os auditores ampliem a sua oferta para além da auditoria financeira, em particular nas áreas da formação e garantia de informações não-financeiras - exemplo do risco climático, diversidade de género e direitos humanos -, com acesso a mais serviços de assessoria para complementar as soluções já existentes. Esta extensão da oferta deve respeitar, contudo, uma clara separação entre serviços de auditoria e consultoria ou não auditoria.
Este repensar da oferta originará um impacto potencialmente positivo na capacidade das auditoras de recrutar e reter talento. A oportunidade de fazer parte de uma organização que disponibiliza um vasto leque de áreas de intervenção e disciplinas pode conduzir à criação de um pool de auditores mais formados, informados, qualificados e comprometidos.
Paralelamente, o mercado valoriza uma série de competências entre os auditores, incluindo conhecimento sobre gestão e especialização técnica financeira, tributária ou jurídica. As firmas de auditoria precisam de atrair e desenvolver recursos com uma expertise alargada.
Perante este aumento da procura por mais serviços, particularmente nas áreas de relatórios não financeiros, é expectável que surjam questões sobre como os serviços de auditoria e consultoria podem ser ampliados e conjugados. Qualquer expansão no foco dos serviços terá que ser considerada de modo a possibilitar a gestão de possíveis conflitos de interesse, ao mesmo tempo que se desenvolvem estratégias de partilha de conhecimento e a implementação de respostas abrangentes.
Existem preocupações substanciais e válidas sobre o funcionamento do mercado de auditoria. Pede-se uma reforma abrangente que amplie o número de participantes no mercado para melhorar o grau de qualidade e escolha existente. Com efeito, muitas empresas parecem sentir que contam hoje com uma escolha muito limitada no que se refere à nomeação de um novo auditor, num contexto de rotação obrigatória de firmas de auditoria e exigência de regras de independência. O status quo parece já não ser uma opção.
Auditoria conjunta
A convicção de um número significativo de stakeholders no mercado é que a auditoria conjunta (joint audit) reforça a qualidade do processo, em particular no caso de negócios de natureza mais complexa e de grande escala, exposição pública e interesse colectivo. Torna-se mais relevante equacionar mecanismos que permitam a entrada de novos operadores no mercado da auditoria e que estimulem a concorrência entre um maior número de empresas oriundas de diferentes contextos culturais e técnicos, o que resultará numa maior inovação e numa melhor resposta às necessidades do mercado.
A aplicação da regra dos “quatro olhos” permite, sem duplicar o trabalho realizado, proporcionar um maior escrutínio sobre os resultados da auditoria e, assim, aumentar a confiança dos utentes da mesma. A experiência combinada de vários auditores aumenta a capacidade de benchmarking e de entrega das melhores práticas para o mercado, não apenas relativamente à análise das informações financeiras, mas também em relação a estruturas de controlo interno e à preparação de relatórios financeiros.
Digitalizar a actividade
Quando confrontados com os avanços ao nível da inovação tecnológica e da automatização, podemos questionar que processos e tarefas poderão vir a ser passíveis de alteração e transformação no contexto da auditoria. Uma boa base de partida para este exercício de reflexão, necessário à profissão, e que em certa medida já se iniciou, é que, excepção feita ao julgamento profissional por parte dos auditores, os restantes elementos do processo serão passíveis de mudança.
A auditoria é considerada, por alguns autores, como uma das profissões com maior risco de substituição da força de trabalho por via de transformações associadas à inteligência artificial e à robotização. Serão necessárias menos horas de trabalho para a gestão de dados, já que as ferramentas analíticas podem fazer muito mais rápido e em dimensões muito maiores o que hoje é apenas executável com recurso a amostragem. Por esse motivo, discute-se já a análise de um campo alargado, introduzindo menos probabilidades de distorção.
A auditoria vive a pressão constante por parte do mercado para a redução de honorários, e parte da resposta poderá vir da introdução de vectores de eficácia na execução do trabalho. Para tal, as inovações tecnológicas podem contribuir de forma muito significativa.
Numa outra dimensão, associada à sustentabilidade da profissão, surge a capacidade para atrair jovens talentos a entrar no mercado de trabalho. Os desafios apresentados pela tecnologia serão decisivos para atrair novos auditores, não só no que toca à modernização da actividade desenvolvida, como no equilíbrio entre vida profissional e pessoal.
A tecnologia permitirá reinventar a experiência de auditoria para clientes e equipas e potenciar o trabalho dos auditores, ao capacitá-los com novas soluções. A promessa é de uma abordagem mais ampla à inovação, combinando apetência tecnológica, competências humanas e conhecimentos técnicos.
É expectável que as normas que enquadram o trabalho de auditoria continuem a evoluir no sentido da exigência, mas serão também naturalmente influenciadas pelas inovações tecnológicas. Esperamos que sim. Encontramo-nos numa fase de transição e, como sempre, o mercado tenderá a ajustar-se.
A aposta tem de passar pela crescente introdução do digital, nas suas várias vertentes, na vida das empresas de auditoria. No entanto, essa adaptação tem hoje de ser feita a uma velocidade muito significativa, e é essencialmente este aspecto que pode colocar algumas entidades fora do mercado.
Um papel a cumprir
O futuro a traçar para a auditoria é complexo. No entanto, avaliar a ambição de gestores e decision makers e desenhar recomendações podem ajudar a criar um diálogo que conduza a uma visão partilhada.
Este é um convite para o mercado - no qual se incluem reguladores, legisladores, profissionais de auditoria e empresas - reconsiderar as expectativas acerca da auditoria. Em conjunto, podemos explorar um curso de acção para a reforma da auditoria que aborde as tensões actuais e responda a novas necessidades, enquanto tornamos a auditoria mais eficaz nas suas aplicações e finalidades futuras.
O mercado de prestação de serviços de auditoria evolui ao longo do tempo e é uma profissão e função com história. Contribui e cumpre uma função para o mercado.
É necessário que as autoridades competentes monitorizem a evolução do mercado, em especial no que respeita aos riscos decorrentes de uma elevada concentração e ao desempenho dos comités de auditoria (vulgarmente os conselhos fiscais). A transparência das actividades das autoridades competentes deverá contribuir para aumentar a confiança dos investidores e dos consumidores.
Uma abordagem regulamentar comum, que enderece os desafios aqui elencados, A compreensão pelo mercado da expressão “auditoria” tem de ser imediata e valorizada deverá reforçar a integridade, independência, objectividade, responsabilidade, transparência e fiabilidade dos Revisores Oficiais de Contas (ROC) e Sociedades de Revisores Oficiais de Contas (SROC), contribuindo para a qualidade de auditoria e, dessa forma, para o saudável funcionamento do mercado, garantindo, simultaneamente, um elevado nível de protecção dos consumidores e dos investidores.
A confiança é um factor determinante para o desenvolvimento das economias modernas, e quem acompanha o mercado e vive a experiência empresarial sabe como é essencial na construção das relações entre agentes económicos. A compreensão pelo mercado da expressão “auditoria” tem de ser imediata e valorizada. A análise e disponibilização de informação financeira tem de ter em mente o seu destinatário final: o utilizador da informação financeira.
Para que tal aconteça, cada entidade empresa de auditoria, regulador, supervisor e utilizador de auditoria - tem de fazer o seu papel e contribuir activamente para este objectivo comum.
InRisco