IAS 8 – Aplicação, consequências no relato financeiro e impactos para os utilizadores da informação financeira

Apesar de não existirem alterações estruturais a esta norma há mais de dez anos, embora se espera para data próxima alguma atualização dado o projeto em curso de revisão da taxionomia, conhecer os seus contornos e perceber como os diferentes stakeholders analisam os seus impactos, após alguns anos volvidos, deve motivar especial interesse para os preparadores da informação financeira no sentido da melhor aplicação de critérios contabilísticos e das exigências de divulgação, mitigando assim o risco de impactos adversos que uma leitura inapropriada pode originar.

O atual contexto pandémico e pós pandémico pode potenciar também uma necessidade mais frequente de redefinição de pressupostos associados às estimativas, assim como a necessidade de adaptar as políticas contabilísticas de forma a que estas melhor se adaptem a uma realidade económica tendencialmente mais mutável e volátil, aumentando a intensidade e importância de conhecimento da base normativa aplicável, a qual vamos, de seguida, procurar revisitar de forma crítica.

 Enquadramento base

A IAS 8 procura regular o tratamento dos erros e das alterações de políticas e estimativas contabilísticas no sentido de garantir que a informação financeira seja comparável, conferindo-lhe relevância e fiabilidade. Esta norma incorpora um racional de imputação destes efeitos contabilísticos quanto ao momento e à forma de reconhecimento, preconizando, de uma forma geral, a aplicação prospetiva quando se trata de efeitos de alteração das estimativas e a aplicação retrospetiva quando se trata de efeitos de erros e de alterações das políticas contabilísticas.

A aplicação retrospetiva consiste em reconhecer diretamente nos capitais próprios (reservas e resultados acumulados ou transitados) o valor dos ajustamentos relativos a períodos anteriores. Esta aplicação implica ainda que na apresentação das demonstrações financeiras do exercício em que os ajustamentos foram reconhecidos, os efeitos na informação financeira comparativa sejam reexpressos como se o efeito que agora se determinou tivesse sido, desde sempre, imputado aos resultados de períodos anteriores. A reexpressão retrospetiva implica assim que a informação comparativa seja ajustada face àquela que foi publicada anteriormente.

De forma diversa, a aplicação prospetiva, consiste em reconhecer o valor dos ajustamentos a partir do momento presente em que os pressupostos na formulação das estimativas foram alterados. Este pressuposto é valido na medida em que a alteração da estimativa não seja relacionável com um erro, ou se quisermos, não seja decorrente da falta de uso, ou uso incorreto, de informação fiável que estava disponível anteriormente.

 Alterações de políticas contabilísticas

As políticas contabilísticas são os princípios, bases, convenções, regras e práticas específicas aplicadas por uma entidade na preparação e na apresentação de demonstrações financeiras, podendo as alterações de políticas contabilísticas resultar de exigências efetuadas no âmbito de uma Norma ou Interpretação ou de alterações voluntárias das políticas. É preconizada a aplicação retrospetiva a todas as alterações de políticas, exceto no caso de alterações decorrentes de uma Norma ou Interpretação da qual resulte um tratamento específico que possa contrariar este princípio.

A alteração de política contabilística distingue-se do erro na medida em que, diferentes políticas podem ter aderência à realidade económica, representando interpretações diferentes sobre a posição financeira e o desempenho de uma entidade dentro do espaço discricionário permitido pelo normativo. A realidade a traduzir contabilisticamente é complexa e mutável ao longo do tempo, pelo que a flexibilidade normativa necessária para que as operações possam ser adequadamente registadas pode encontrar tradução na aplicação de diferentes políticas e na sua alteração ao longo do tempo.

O tratamento preconizado para as alterações de políticas contabilísticas (retrospetivo) visa garantir que o relato financeiro dos diferentes períodos seja preparado com base nos mesmos pressupostos, permitindo comparar diferentes períodos económicos e avaliar tendências, no entanto também pode implicar riscos quanto ao espaço discricionário (diferentes opções) conferido à gestão no que respeita à apresentação do desempenho aos longo de diferentes exercícios.

Senão vejamos, mediante a aplicação de diferentes políticas no tempo, um ano que poderia ser mau, pode ser transformado num ano bom, imputando-se os efeitos negativos diretamente a resultados de anos anteriores sem passarem por resultados nas contas publicadas no ano a que respeitam, ou até mesmo nos comparativos desse ano, quando a alteração afeta uma serie longa de exercícios. Estas opções por diferentes políticas poderem relegar para segundo plano impactos negativos (para resultados de exercícios anteriores) que a não ocorrer a alteração de política contabilística diminuiria os resultados do período presente.

Isto mostra que a decisão sobre uma política contabilística e sobre uma alteração posterior, deve ser devidamente ponderada, e corretamente divulgada no Anexo, nomeadamente os seus efeitos no ano da alteração.

 Alterações nas estimativas contabilísticas

A necessidade de se efetuarem estimativas contabilísticas é uma consequência das incertezas inerentes às atividades empresariais, pelo que determinados itens das demonstrações financeiras não podem ser mensurados com precisão numa determinada data de prestação de contas, podendo apenas ser estimados.

A alteração na estimativa é um ajustamento que resulta da avaliação do presente estado dos ativos e passivos, e obrigações e benefícios futuros esperados associados aos mesmos, ou das circunstâncias associadas. A revisão das estimativas decorre de alterações nas circunstâncias em que a estimativa se baseou ou em consequência de nova informação ou de mais experiência. Decorre, portanto, de algo novo do tempo presente que altera a perceção passada. O passado não estava errado à data em que os acontecimentos foram traduzidos, os novos acontecimentos é que justificam alteração de perceção pelo que o desempenho deve traduzir o seu impacto nos resultados do período presente.

Para melhor se perceber a fronteira entre uma alteração na estimativa e um erro, podemos assumir o pressuposto de que caso a formulação de uma estimativa seja alterada por uso incorreto de informação fiável, ou não utilização de informação disponível ou falta de informação que poderia razoavelmente esperar-se que tivesse sido obtida, aí sim, estaríamos perante uma situação que se qualificaria como um erro.

 Erros

Os erros de períodos anteriores correspondem a omissões, e distorções, nas demonstrações financeiras da entidade de um ou mais períodos anteriores decorrentes da falta de uso, ou uso incorreto, de informação fiável que (i) estava disponível quando as demonstrações financeiras desses períodos foram autorizadas para emissão; e (ii) poderia razoavelmente esperar-se que tivesse sido obtida e tomada em consideração na preparação e na apresentação dessas demonstrações financeiras.

Os erros, à semelhança do preconizado para as alterações de políticas contabilísticas, devem ser corrigidos através da reexpressão retrospetiva exceto até ao ponto em que seja impraticável determinar, ou os efeitos específicos de um período, ou o efeito cumulativo da alteração.

O efeito da correção de um erro per si não consubstancia forçosamente uma realidade económica ou fluxos de caixa, podendo ser muitas vezes meros ajustamentos contabilísticos que apenas adquirem relevância ao nível do desempenho quando são imputados aos exercícios a que respeitam através da reexpressão retrospetiva de contas, conferindo assim comparabilidade à informação financeira.

 Implicações para os stakeholders decorrentes da republicação de contas

Quando identificamos que por força da aplicação da IAS 8 e da reexpressão retrospetiva que os resultados passados são diferentes daqueles que foram apresentados, os utilizadores da informação financeira podem sempre interrogar-se sobre se estes efeitos poderiam ter sido ou não considerados em tempo oportuno no passado, quais os interesses da gestão e se esta foi favorecida ou prejudicada. Raciocínio semelhante pode ser formulado quando é identificada uma alteração da estimativa que tem um efeito significativo no presente, podendo também existir interrogações sobre se esta alteração já deveria ter ocorrido no passado.

Esta problemática motivou ao longo do tempo diversos estudos empíricos que concluíram sobre os impactos da republicação de contas (não necessariamente através da reexpressão retrospetiva), nomeadamente sobre eventuais prejuízos ou benefícios para a gestão, as suas motivações e a forma como os utilizadores percecionam a republicação.

Richardson, Tuna e Wu (2002) com o objetivo de avaliar a utilidade da informação financeira na previsão de manipulação de resultados verificaram que as empresas que republicam resultados tinham uma maior expectativa de fluxos de caixa futuros e tinham um maior endividamento. Verificaram também que as principais motivações para a manipulação de resultados resultam da pressão do mercado de capitais e da necessidade de reduzir os custos de contratação.

Já Hribar e Jenkins (2004) com o objetivo de avaliar o efeito da republicação de contas na perspetiva de fluxos de caixa futuros das empresas e o custo do capital encontraram evidencia empírica que indica que a reexpressão de contas afeta o valor da empresa através das perspetivas de cash flow e efeito de risco. Os resultados são consistentes com as teorias que defendem que a republicação aumenta a incerteza quanto à credibilidade da gestão, à sua competência e perceção sobre a qualidade dos resultados. Estes autores concluíram também que republicações despoletadas por auditores aumentam o custo do capital.

Callen, Livnat e Segal (2006) com o objetivo de investigar os principais fatores que podem afetar a perceção dos utilizadores da informação financeira perante o anúncio de republicação de contas verificaram uma reação negativa às republicações derivadas de erros. Os autores sugeriram que os investidores percecionam as reexpressões como um sinal negativo por três motivos principais: (i) indicam problemas no sistema contabilístico que podem resultar de problemas operacionais e de controlo; (ii) diminui as expectativas de fluxos de caixa futuros; (iii) indica uma manipulação dos resultados numa tentativa da administração de disfarçar uma diminuição dos resultados. Estes autores verificaram também que a reação média do mercado à republicação de contas devido a erro é negativa. Em contraste, a reação média do mercado ao anúncio de republicação decorrentes de alterações nas políticas contabilísticas não é significativamente adversa.

Kravet (2009) com o objetivo de avaliar a relação entre a republicação de contas e o custo de capital concluiu que a republicação de contas aumenta o custo do capital apesar desse efeito ser diluído nos exercícios seguintes. Concluíram ainda que o aumento do custo do capital é ainda maior quando os motivos que dão origem à republicação são identificados pela auditoria externa ou quando a Entidade republica contas mais do que uma vez.

Em síntese, podemos referir que os estudos analisados concluem que a republicação de contas resultante de erro ou fraude é a que mais penaliza as empresas ao nível do risco percecionado e consequentemente ao nível do custo de capital. Existe ainda evidência empírica que indica que os investidores questionam a integridade da gestão quando as republicações estão relacionadas com fraude. Apesar da associação que pode ser feita, a IAS 8 não deixa de ser um mecanismo fundamental para garantir a comparabilidade das demonstrações financeiras, colocando-se cada vez mais o foco na qualidade na informação prestada no momento em que implicações relevantes acontecem como indutor de confiança.

Uma divulgação adequada, clara e inteligente permitirá aos stakeholders uma perceção adequada, transmitindo conhecimento e confiança para as suas decisões. Só este nível de transparência poderá ilidir aquela que tende a ser a perceção dos estudos empíricos do passado, caminho que deverá ser percorrido não só através do desenvolvimento das exigências normativas quanto ao nível de divulgação, mas também da tomada de consciência dos preparadores da informação financeira.

O Auditores podem representar também um papel muito importante, desafiando a gestão a um nível apropriado sobre a forma como as contas são explicadas, aspeto que valoriza o processo de preparação da informação financeira, uma vez que a gestão pode ter uma oportunidade de ver refletida, através da visão dos seus Auditores, a perceção dos diferentes utilizadores, como percebem e interpretam, podendo assim corrigir e completar divulgações que por omissão possam, no limite, potenciar a perceção de risco sobre a isenção da gestão, as suas motivações e interesses.

InExecutive Digest

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